terça-feira, 15 de março de 2011

garota moleque

       Despertei cedo aquela manhã, algo que normalmente não acontece comigo, justamente por ser sábado, e nesse dia eu me dedico 100% ao sono. Tentava fechar os olhos novamente e voltar para o meu delicioso sonho, onde estava em uma cidade de chocolate - lá eu caminhava pelas ruas e sentia o aroma de confeitos pelo ar, a grama tinha gosto de chiclete de menta e as maçãs das árvores eram cobertas por caramelo. As casas eram de massa de bolo, e os telhados eram pirulitos. – Mas minha tentativa foi frustrante, a fome que aquele sonho me proporcionou era maior do que o meu desejo de voltar a dormir.

Então, encorajando-me a encostar os pés no chão gelado do meu quarto, levantei-me e, arrastando a calça larga do pijama, andei até a janela que estava meio aberta. Abrindo com os dedos as persianas brancas, olhava com dificuldade tudo o que acontecia do lado de fora da minha casa. E como sempre, nada me impressionou. As mesmas pessoas estavam ali: Dona Fabiana estava usando seu mais clássico terninho azul marinho, e como de costume, calçava os sapatos de vinte centímetros no meio do caminho enquanto corria para não perder o horário do metrô. Seu Bernardo acabara de abrir a padaria e o cheiro de pão de queijo chegava até a minha janela, fazendo com que minha fome só aumentasse, e Dona Marta já estava sentada no banquinho do parque do Jardim Botânico dando comida para os pombos. Nunca entendi essa louca paixão que ela tinha por pombos, eles sempre foram nojentos para mim, sujos e cheios de doenças, mas de alguma forma aquelas criaturinhas faziam Dona Marta mais feliz, ou melhor, eram as únicas coisas que a deixavam feliz, nunca a vi sorrir para outra coisa, ou alguém, na verdade, sempre achei que ela fosse meio ranzinza.

O céu aquela manhã estava  bem azul, sem nenhuma nuvem para atrapalhar o brilho do sol, o dia estava perfeito para ir a praia e surfar, ou andar de skate. -Você pode estar se perguntando que tipo de garota eu sou pra pensar em fazer essas coisas no lugar de ligar para amigas e combinar de ir à praia de Ipanema só pra tomar um sol, pois é, eu nunca fui esse tipo de garota, desde pequena aprendi a gostar de jogar futebol e conviver mais com garotos, eu gosto de ser assim, comer um sanduiche com muito bacon no lugar de um prato de “mato”.
           
Voltei os olhos para dentro do meu quarto, tudo estava uma zona total, minha cama estava com os lençóis todos revirados – mas afinal, quem é que dorme sem se mexer? – haviam pilhas de roupas pelo chão, já não sabia o que era limpo ou sujo, mas considerei tudo sujo por estarem todas juntas. Ignorei por completo o meu quarto e atravessei a casa até a cozinha para tomar um leite, como costumo fazer. Meus pais já estavam de pé, meu pai estava na cozinha fazendo ovos mexidos e minha mãe estava na sala com o jornal na mão marcando possíveis apartamentos para morar. Sentei-me com ela fazendo-lhe companhia enquanto tomava meu leite.

- Bom dia Marcela! – os dois falaram juntos com a mesma entonação.  - Agora que meus pais estão se separando, eles fazem de tudo para chamar a minha atenção e disputar lugar na minha vida. As vezes pergunto-me se eles  realmente lembram que eu sou filha e nunca vou preferir um ou outro.
-                  Bom dia... – Respondi com a voz rouca ainda.

Meu pai chegou com o ovo, juntamente com um pão de queijo saindo do forno, aquilo fez meu estômago falar alto, e minhas salivas caírem pelo canto da boca. A cada pequeno pedaço de pão de queijo, mastigava vagarosamente para degustar aquele sabor único por cada pequeno segundo. No quinto pão de queijo retirei-me para não detonar minha dieta ainda mais. Então voltei para o meu quarto, olhei para as montanhas de roupa e fiquei com preguiça de tudo aquilo, peguei um short jeans, uma blusa branca sem manga e com rendinha na ponta, um cintinho fino e uma havaiana, peguei dez reais na carteira e saí para caminhar. Não queria surfar, mas muito menos ficar em casa.
           
Enquanto caminhava pelas Rua Pacheco Leão, observava o Parque, ele estava mais verde do que ultimamente, havia menos pessoas fazendo visitações naquela manhã, o que eu achei estranho, porque era sábado e as pessoas normalmente escolhem esse dia para fazer piquenique com a família. Continuei a caminhar sem saber pra onde ir, simplesmente fui caminhando. Andava analisando as pessoas que passavam por mim. Algumas bem humoradas, outras não. Algumas mulheres com olhares estranhos e suspeitos, outros homens com expressão preocupada. Crianças correndo em direção ao parque e mães correndo atrás das crianças. Parei por um instante ao encontrar uma ramificação da rua que costumava caminhar, fiquei parada procurando o final dela, mas ela era estreita e muito longa. Virei-me para continuar meu caminho, mas aquela pequena rua me chamou a atenção, e a curiosidade é meu maior defeito.

            Caminhando com passos curtos e bem lentos, sentia o asfalto antigo tocarem os dedos dos meus pés. As casas das ruas eram velhas e poucas eram pintadas. A maioria era feita de madeira e o cupim já estava fazendo com que elas estivessem ao ponto de cair. Uma das casinhas me chamou a atenção, era uma igreja bem pequena, as paredes estavam detonadas e o telhado era quase inexistente. A porta e as janelas eram de madeira pintadas de azul. As escadarias eram de cimento e a terra vermelha cobria quase que totalmente a sua cor branca. Enquanto passava os olhos pela pequena Igrejinha vi uma criança sentada de pernas cruzadas de frente para a porta aberta.

            Aproximei-me mais um pouco da criança vestida de trapos, e ela se assustou com os meus passos.

-       Desculpe – Eu disse, mas ela não me respondeu. Tentei identificar para onde o olhar da pequena criança estava fixado, e notei uma pequena caixinha com uma vela acesa ao lado. – Posso me sentar aqui? – Ela continuou sem responder.

Sentei-me então ao lado do menino e fiquei olhando para a caixinha iluminada. Sentia a respiração ofegante dele como se estivesse acabado de correr alguns quilômetros, ele segurava forte as mãos entrelaçando os dedos, e franzindo a testa olhava ainda com mais vontade para a caixinha dourada.
-       Por que você está aqui fora? – perguntei cortando o silêncio que estava no ar.
-       Porque eu não posso moça... Ele disse abaixando a cabeça.
-       Como não pode? O que te impede de ir até lá? – perguntei indignada com a resposta do menino.
-       Eu não tenho ropa pra vesti não moça, e a mãe disse pra não entrar na Igreja de chinelo que é falta de respeito com o Moço...
-       Que “moço”? – quis saber.
-       Minha mãe sempre me conta histórias antes de dormi, e uma vez ela me contou que tem um moço ali naquela caixinha que morreu por mim, eu não acreditei no começo porque como alguém morre por outra pessoa sem nem conhecer? E como essa pessoa consegue ficar dentro de uma caixinha tão pequena? Mas a mãe falou que Ele me conhecia a muito tempo, bem antes deu nascer e pra eu viver bem Ele morreu em uma cruz pra me salvar de todo o mal. A mãe disse que se eu pedir qualquer coisa pra Ele, ele vai ajudar... – enquanto ele dizia, seus olhos brilhavam, como se estivessem refletindo a estrela mais brilhante do mundo.

Eu olhava para o rostinho daquela criança de traços já rígidos e expressão triste e não conseguia parar de observar a pureza que seu olhar transmitia. Ele sorria para mim com a meia boca e voltava o olhar para dentro da Igreja com a maior satisfação do mundo. Ele devia ter nove anos e tinha uma maturidade tão superior – Filho! Vamos para casa? – Uma voz doce vinda de uma mulher jovem com roupas sujas e surradas interrompeu meus pensamentos.

-       Até mais moça, tenho que ir! – o menino saiu saltitando em direção a mãe, abraçando-a começou a contar do seu dia e o que havia feito. Enquanto os via desaparecer pela rua comecei a correr, acho que nunca corri tanto na vida como hoje. Meu coração batia rápido demais, estava com medo de ter uma parada cardíaca, mas o desejo de reencontrar aquele garotinho era maior.
-       Ei! Espere! – gritei esperando alguma resposta. O garotinho olhou para trás com uma expressão surpresa, parou, esperou eu chegar e observou a minha respiração ofegante atentamente até eu inspirar um pouco mais de ar e começar a falar. – Ele realizou o seu pedido? – finalmente perguntei.
-       Não – um sentimento de decepção passou por mim – Eu apenas agradeci – Ele sorriu, segurou a mão esquerda da mãe e continuou a caminhar pela rua até que eu os perca de vista definitivamente.

Fiquei ali tentando processar o que aquela criança de aproximadamente nove anos acabara de dizer. Comecei a caminhar de volta para casa refletindo sobre aquela tarde que havia tido. As coisas pareciam tão mais simples do que o normal, naquela manhã a vida estava tão morta e monótona, e agora, no fim de tarde tudo estava tão mais vivo. Dona Fabiana chegava do trabalho muito mais elegante do que estava mais cedo, por mais que estivesse com a mesma roupa. Caminhava devagar e de cabeça erguida. Seu Bernardo havia encontrado com sua filha e quis fechar a padaria mais cedo para passear com a caçula no momento em que descobriu que seria avô. E Dona Marta encontrou com um senhor que também gostava de alimentar pombos, e dessa vez ela sorria para ele.
Chegando em casa corri para o banheiro, tranquei a porta e tirei a roupa com a maior rapidez do mundo, liguei o chuveiro, e enquanto esperava a água esquentar olhava-me no espelho. Subi no vaso sanitário e observei cada traço do meu corpo. Reparei que nunca deixei de ser gordinha, lembrei dos apelidos maldosos que meus amigos me davam por eu ser acima do peso de uma garotinha normal. Olhei para meu rosto e apalpei cada parte dele, minha boca que era mais carnuda, assim como a da minha mãe, meu nariz que era mais gordinho como o do meu pai, meus olhos azuis como o dos dois. Depois de analisar todo meu rosto, olhei para a barriga que ainda não era a que eu queria, passei os olhos pelos braços que não eram os que eu queria, pelas pernas que não eram as que eu queria e abri um sorriso para mim mesma.

Desci da privada e entrei debaixo do chuveiro, sentindo a água fervendo tocar minha pele olhava para cima e ria, ria porque não tenho motivos para chorar, sorria porque não vivo em uma cidade comestível e nada na vida é como um sonho feito de chocolates, mas ria principalmente porque não tenho o que reclamar, só agradecer.